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Foto do escritorSindisep/RJ

A ADI 2135 e o fim do regime jurídico único: o STF errou

Para o site Congresso em Foco.

O texto original encontra-se no link:


Em 6 de novembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.135, ajuizada em 1999 pelo PT, pelo PCdoB e pelo PDT, questionando a validade de alterações promovidas no texto da Carta de 1988 pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998 – a reforma administrativa do governo FHC.

No curso do debate sobre a PEC 173/95, que deu origem à EC 19, a Câmara dos Deputados, entre outras decisões relevantes, rejeitou, na votação de um destaque para votação em separado, a alteração ao caput do artigo 39 da Constituição, que previa que os entes federativos deveriam manter regime jurídico único (RJU) e planos de carreira para os servidores da administração direta, autárquica e fundacional.

No entanto, ao elaborar a redação para o segundo turno, o relator da PEC 173/95, deputado Moreira Franco, desrespeitou a decisão dos deputados e converteu o parágrafo 2º do art. 39 por ele proposto em caput do art. 39, como se a rejeição da alteração ao caput do art. 39 significasse, por si só, a rejeição do próprio texto constitucional aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte.

Essa manobra foi imediatamente questionada por deputados da oposição em plenário, sendo a questão de ordem indeferida em 19 de outubro de1997 pelo então presidente da Câmara, Michel Temer. Em seguida, foi ajuizado um mandado de segurança para impedir a votação em segundo turno do texto adulterado, mas o STF negou a liminar pleiteada sob o argumento de que a discussão ainda estava em curso na Câmara.

Ao ser votada a matéria em segundo turno, o texto adulterado pelo relator foi aprovado por três quintos de votos e mantido pelo Senado Federal, em dois turnos de votação e por três quintos dos votos.

Apenas em 12 de agosto de1999 o STF determinou o arquivamento do mandado de segurança, sob argumento de que se achava prejudicado.

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Ao ser ajuizada em janeiro de 2000 a ADI 2135, da qual fomos o Patrono[1] em nome do Partido dos Trabalhadores, apresentamos todos os elementos relativos ao debate travado, assim como precedentes comprobatórios de que a manobra redacional adotada era írrita, portanto sem valor legal, e apenas configurava fraude à decisão do Plenário na votação da matéria.

Em 8 de novembro de 2001, o relator da ADI 2135, ministro Néri da Silveira, em profundo e correto voto, reconheceu a fraude ocorrida, concedendo a liminar. Contudo, pedidos de vistas da ministra Ellen Gracie (08.11.2001) e do ministro Nelson Jobim (27.06.2002), este devolvido apenas em 23.03.2006, impediram a conclusão do julgamento.

Apenas em 2007, após o Poder Executivo haver inclusive regulamentado o “regime de emprego público” e implementado essa alternativa em alguns poucos órgãos, fragilizando a unicidade do regime jurídico, o Plenário concluiu o julgamento da medida liminar, seguindo o voto do relator.

Assim, a demora no julgamento da liminar (de 2000 a 2007) decorreu de pedidos de vistas, mas ela não impediu que o Plenário reconhecesse a correção do roto do ministro relator e do próprio pedido formulado na ADI. Assim, restabeleceu-se o caput original do art. 39 da CF, e a Carta Magna passou a ter dois caputs nesse artigo: o original e o introduzido pela EC 19.

Em setembro de 2020, a nova relatora, ministra Cármen Lúcia, apresentou seu voto, confirmando a liminar deferida em 2007 e acolhendo os argumentos dos partidos políticos autores da ADI 2135.

Em 18 de agosto de 2021, retomado o julgamento, o ministro Gilmar Mendes (que era advogado-geral da União quando do início do julgamento da ADI, em setembro de 2001 e deveria julgar-se impedido, embora o regimento do STF não o exija) antecipou seu voto, e defendeu, como ministro, a mesma tese que defendera como advogado-geral da União: que se tratava de matéria “interna corporis” e que seria “legítima” a decisão do presidente da Câmara ao indeferir a questão de ordem, assim como a aprovação da redação final apresentada, suprimindo o caput do art. 39, apesar da rejeição de sua alteração nos termos propostos pelo Relator.

Pedido de vistas do ministro Kassio Nunes Marques suspendeu, então, novamente, o julgamento.

Retomado em 6 de novembro de 2024, a Corte, porém, por maioria de votos, acolheu a tese do voto do ministro Gilmar Mendes.

Em seu voto, o ministro Nunes Marques afastou os argumentos adotados para o deferimento e confirmação da liminar pelos ministros Néri da Silveira e Cármen Lúcia, entendendo, singelamente, que a emenda referente ao art. 39, caput fora de “natureza redacional sem qualquer alteração substancial”, ignorando, de forma surpreendente, a natureza dos fatos.

Passou despercebido ao ministro que, a nova redação então dada ao caput do art. 39, que fora rejeitada, previa que “lei de iniciativa de cada Poder da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios instituirá política remuneratória e planos de carreira obedecendo aos princípios do mérito e da capacitação continuada e à natureza, complexidade e atribuições dos respectivos cargos”, vedando ainda concessão de diversas vantagens ou “penduricalhos”.

Essa redação era acompanhada de alteração no art. 37, IX, prevendo que “lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios disporá sobre o contrato de emprego público na administração direta, autárquica e fundacional”. Ambas foram rejeitadas na mesma votação, o que não implicou – como não poderia – a supressão do inciso IX do art. 37 em vigor, assim como não poderia implicar a supressão do caput original do art. 39.

A redação adotada pelo relator da PEC 173/95, porém, colocou como caput do art. 39 dispositivo que passaria a prever apenas que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes” (regra até hoje não cumprida pela União). Modificou essencialmente o conteúdo o art. 39, num claro e cristalino “golpe de mão” que transformou a derrota da introdução do regime de emprego em lugar do RJU em uma “omissão constitucional”, permitindo qualquer regime de trabalho.

Porém, para o ministro Nunes Marques, isso não era “alteração substancial”… Nem haveria inconstitucionalidade formal, mas apenas “resistência” dos partidos de oposição, que, ao impedirem a aprovação da nova redação do caput do art. 39, não teriam afetado o novo § 2º, que – magicamente – foi “trasladado” para o caput. Nesse raciocínio, o que ocorreu a posteriori teria validado a manobra redacional, o que seria de competência do Legislativo no gozo de sua autonomia e normas regimentais, insuscetível de exame pelo Judiciário…

O ministro Flávio Dino, para nossa surpresa, considerou estar em debate matéria de exclusiva competência das casas legislativas e que o instrumento regimental adotado seria de natureza infraconstitucional. Nesse sentido, para o ministro, caberia à casa legislativa aplicar o entendimento que achar conveniente. Assim, a validação pelas casas, em sequência, daria igual validade à manobra. Como corolário dessa tese, uma vitória da oposição, rejeitando mudança promovido por PEC em primeiro turno, poderia ser objeto de “ressurreição” em segundo turno…

O ministro Dino apenas ressalvou a eficácia da flexibilização de regimes para o futuro, de modo a não serem afetados os novos servidores, de forma compulsória. Nesse ponto, não inova: ao reintroduzir o regime celetista em 1974, pela Lei nº 6.185, o próprio regime militar seguiu essa mesma tese e não alterou de forma compulsória o regime dos então servidores estatutários, apesar da consolidada jurisprudência da corte de que não há direito adquirido a regime jurídico. A modulação de efeitos foi acolhida pelo ministro Gilmar Mendes, que inaugurou a tese e, ainda, acrescentou a possibilidade de serem diferenciadas as “carreiras de Estado” quanto ao regime jurídico.

Também os ministros Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, André Mendonça, Dias Toffoli e Cristiano Zanin adotaram esse entendimento, não identificando violação ao processo legislativo, e que tudo teria ocorrido “na forma do regimento interno”, ou teria sido “mera formalidade” empregada para suprir um “caput que não existiria” – igualmente ignorando os fatos, a natureza do texto constitucional e os requisitos da própria Constituição para sua modificação.

Ignoraram tais votos que, se a Constituição não prevê a figura do destaque para votação em separado (DVS), ela tampouco permite que um texto rejeitado seja restabelecido, ou que, rejeitada uma alteração constitucional, outra seja posta em lugar do texto vigente, mediante “remanejamento” de posição, como se a intenção da emenda constitucional não fosse a de alterar um texto vigente, ou introduzir novo texto na Constituição, mas produzir “do zero” uma norma constitucional. A soberania do Plenário, para aprovar redação final em qualquer matéria, não pode, por óbvio, subverter o próprio processo legislativo.

O próprio presidente do Supremo, ministro Roberto Barroso, de forma curiosa, defendeu ainda a redação final adotada com argumentos que, de jurídicos, nada têm: Sua Excelência arvorou-se em papel de “reformador do Estado”, defendendo que: a extinção do RJU estaria “em consonância com as demandas atuais da administração pública e favorece a promoção da eficiência”; “ao reduzir o formalismo excessivo na gestão administrativa, a mudança oferece maior flexibilidade para as contratações públicas de pessoal”; e “tem potencial de melhorar a qualidade dos gastos com pessoal por proporcionar modelos de contratação que considerem as particularidades e finalidades específicas de cada função e as necessidades da administração”.

Apenas os ministros Luiz Fux e Edson Fachin reconheciam a inconstitucionalidade apontada e confirmada pela relatora, ministra Cármen Lúcia, notadamente quanto à necessidade de observância do rito constitucional estabelecido para aprovação de emendas à Constituição. Como destacado pelo ministro Fachin, a questão de fundo é de extrema importância e gravidade, pois se trata da manutenção ou não do regime jurídico único, estatutário – algo que, em primeira votação, a Câmara dos Deputados decidiu manter. Não se trata, assim, de matéria interna corporis, mas de reintrodução de matéria nova, não aprovada em primeiro turno, pela via da “redação final”.

Eloquente, ainda, o voto do ministro Fux, que apontou a não obtenção do quórum de aprovação para a alteração do caput do art. 39 e que o ocorrido ultrapassa o limite das “adequações redacionais” decorrentes. Ou seja: foram feitas alterações de redação não emanadas do Plenário.

O STF é, como repetidamente dito, a instituição da República que tem o direito de errar por último. Mas também erra. E, no caso do julgamento da ADI 2.135, errou gravemente.

Esse erro, porém, é definitivo, no sentido de que o Plenário não pode rever o julgamento proferido, exceto no que se refere a embargos de declaração.

E, nesse sentido, caberia aos partidos autores da ação apresentar esses embargos, para questionar: a) se, ausente a limitação constitucional, é lícita a introdução de qualquer outro regime jurídico, ou apenas o regime de emprego público já objeto da Lei 9.962, de 2000; b) se, na hipótese de adoção do regime de emprego público para futuros servidores, estarão eles sujeitos ou não à livre demissibilidade; c) se, na mesma hipótese, sendo esses servidores regidos pela CLT e filiados ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), a contribuição da União para esse regime deverá incidir, como ocorre com os demais empregados celetistas, sobre a totalidade da remuneração, visto que, no caso de servidores efetivos, ela incide apenas até o teto do RGPS e corresponde ao dobro da contribuição do servidor; d) se, nos termos do art. 247 da Constituição, as garantias especiais contra a perda do cargo para servidores de atividades exclusivas de Estado implica, obrigatoriamente, a manutenção do regime estatutário.

Disputar a constitucionalidade de uma matéria legislativa no STF é parte do jogo democrático e expressão do sistema de freios e contrapesos. Ela depende, contudo, do quanto a própria corte se empenha no exercício dessa competência e o quanto preza pela sua autonomia e independência ao enfrentar abusos de poder cometidos pelas maiorias no Poder Legislativo. Quando a corte renuncia a esse poder, apegando-se a argumentos frágeis, sem apoio nos fatos e na própria Constituição, não é apenas a matéria em exame que sofre prejuízo. É todo o sistema constitucional e o próprio equilíbrio entre os poderes.

Não desconhecemos o fato de que o Legislativo debate a supressão de poderes do STF, a limitação do poder dos ministros de conceder medidas liminares e até mesmo o seu impedimento, sempre sob o argumento de que a corte extrapola suas prerrogativas. Mas a competência que a Constituição lhe atribuiu, como seu guardião, é missão indeclinável e que não comporta tergiversação, deferência ou submissão a quaisquer interesses, tanto mais quando presente a fraude ao processo legislativo.

Como dizia o grande brasileiro Darcy Ribeiro, ao mencionar as derrotas sofridas ao longo de sua produtiva e impressionante carreira acadêmica e política, “os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”

[1] Ver artigo sobre o tema no Congresso em Foco e no Migalhas.

Luiz Alberto dos Santos, Advogado, Mestre em Administração e Doutor em Ciências Sociais. Consultor Legislativo (aposentado). Sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas. Professor Colaborador da EBAPE/FGV



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